sábado, 8 de setembro de 2018

Espelho da Vida

Poderia a "nossa" vida ser apenas um espelho dela mesmo?

Vivemos com a certeza que nossas decisões atuais determinarão nosso futuro. Contudo, essa premissa, para ser verdadeira, necessita que o tempo seja linear, o que tornaria possível a perspectiva de causa e efeito. O tempo como uma variável tridimensional, por exemplo, nos daria inúmeras outras possibilidades para a mesma decisão, em cada dimensão.

Se passarmos a compreender o tempo como uma variável não-linear, perderíamos a noção de causa e efeito, assim como nossas decisões atuais passariam a não mais determinar nosso futuro. De certa forma, perderíamos nosso suposto "controle", sobre quem somos e aonde queremos chegar ou ser nesse mundo.

Mas como isso seria possível? Ora, se eu fumo, é grande a possibilidade de desenvolver algum tipo de câncer no futuro. De pulmão aumenta em 40 vezes a chance, chegando a 90% o relacionamento entre o hábito de fumar e o câncer de pulmão, segundo o centro especializado em oncologia, Oswaldo Cruz. 

Contudo, apesar de possível, não é provável. Como assim? Bem, não existem pesquisas, minimamente sérias, que estimem quantos fumantes, com grandes probabilidades de morrerem de câncer, morreram de outras causas não relacionadas ao cigarro. Por exemplo: O cara termina de jantar, vai fumar. Verifica que o cigarro acabou. Avisa a esposa que vai na esquina comprar um maço, sai de casa, caminha 20 passos e é atropelado enquanto olhava à frente para ver se a banca ainda estava aberta e descuidou-se ao atravessar a rua. Fatalidade? Futuro determinado? Essa morte, está ou não relacionada ao cigarro? É possível que quando esse rapaz, não sei bem, não o conheço. Mas, quando esse rapaz, aceitou o primeiro trago, um, ou dois anos antes, ou talvez dez ou vinte anos, sei lá, ele determinou de forma absoluta e certa a data e hora de sua morte? Ele "se marcou", para um "destino"? Nem gosto de usar essa palavra, parece mística. Mas ele "se marcou" para um destino irreversível? Irremediável? Morrer, em função do cigarro? Uma simbiose perfeita, entre criador e criatura? Não acredito.

Imagine só. Voltando a perspectiva de tempo e a relação de causa e efeito. Se eu quero aprender a tocar violão, a primeira coisa que faço é me - imaginar - tocando violão. Imagino a sensação, imagino tocando minha música favorita, as pessoas em volta, alguns amigos, alguns familiares, uma namorada talvez, uma fogueira, praia, lua...seria ótimo.

Da mesma forma, se tenho a pretensão de ser engenheiro, arquiteto, geógrafo, físico ou apenas um andarilho, sem residência fixa, a primeira coisa que faço é me - imaginar - me  - projetar -, nesses futuros possíveis. Alguns improváveis.

Quando tomamos uma decisão e olhamos para ela, ela também olha para nós. 

"Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você" Friedrich Nietzsche

De certa forma, não é causa/efeito, mas efeito/causa, por assim dizer.

O tempo não é linear. Não existem caminhos para serem seguidos. Certos ou Errados. Muitas de nossas "escolhas" ou decisões, nós nem fazemos ou tomamos. Moral, costumes, tradições, cultura, poder, hierarquia, amor, amizade, gratidão, decidem por nós. Apenas seguimos a caravana.

Dessa nova perspectiva, da premissa de um tempo não-linear, de que não estamos atrelados materialmente a relação de causa/feito de nossas decisões, me parece que estamos olhando para um espelho, soa até poético, o "espelho da vida", meio clichê, mas ainda poético. Olhamos para esse "espelho" e o que vemos nele, ou melhor, como nos vemos nele, é que determina nosso comportamento e nossas atitudes presentes.

Estamos expostos a muitas variáveis. Não podemos nos cobrar o "controle" sobre todas elas. Temos que reconhecer, que nossa participação se resume a 10% da obra. 

Pensar assim, simplifica o caminho, porque você já começa sendo o que você quer ser.





sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Leite materno contaminado por agrotóxico...

“Que o INSS cobre das empresas os tratamentos de câncer”

Em ato político com deputados federais, a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida cobrou, na noite desta terça-feira (7), em Brasília, o avanço da pauta no âmbito legislativo. “Precisamos avançar em legislação, seja federal, estaduais ou municipais. Se não der para mudar a lei, que usem a tribuna das casas legislativas para denunciar”, afirmou para os parlamentares presentes, o dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), organização que integra a campanha, João Pedro Stedile.

Como exemplo, Stedile citou a aprovação da lei, no município de Vila Valério, no norte do Espírito Santo, que proíbe a pulverização aérea de agrotóxicos.

O dirigente recordou que a campanha foi impulsionada logo após o anúncio de que o Brasil era líder mundial em consumo de agrotóxico, tendo jogado mais de 1 bilhão de litros de venenos nas lavouras em 2009, representando 25% do consumo dessas substâncias em todo o mundo, com apenas 50 milhões de hectares plantados. “Superamos a Índia que tem 400 milhões de hectares, a China que tem 250 milhões e os EUA, com mais de 170 milhões”, afirmou.

De acordo com Stedile, o avanço dos casos de câncer nas mais diversas faixas etárias e, sobretudo, em agricultores e nas populações rurais com altos índices de aplicação do veneno deram ainda mais importância à campanha.

“Que o INSS cobre das empresas químicas os custos dos tratamentos de câncer que tem causado, na mesma lógica que passaram a cobrar os responsáveis pelos acidentes de trânsito.”

Os parlamentares presentes eram os deputados federais Luci Choinacki (PT-SC), Marcon (PT-RS), Elvino Bohn Gass (PT-RS) e Padre João (PT-MG), este último relator da subcomissão especial sobre uso de agrotóxicos da Câmara. De acordo com Padre João, a subcomissão foi criada com bastante apoio dos deputados à época da divulgação de estudos que comprovaram que o leite materno de mulheres de Lucas do Rio Verde – cidade da região central de Mato Grosso, em um dos principais municípios produtores de grãos deste estado - está contaminado por agrotóxicos. “Mas agora teremos muitas dificuldade para aprovar o relatório. Há deputados que já recuaram devido às pressões do Sindag [Sindicato Nacional de Produtos para Defesa Agrícola]. Mas nós queremos aprová-lo até o dia 24 deste mês”, declarou.

Veja também:  Agrotóxico é nova faceta da violência no campo 

FONTE: BRASIL de FATO

 

domingo, 2 de outubro de 2011

Agrotóxico é nova faceta da violência no campo

Pesquisadora analisa dados das intoxicações e mortes decorrentes do uso do veneno e explica como o modelo do agronegócio subordina os trabalhadores e a pequena agricultura.

O modelo não é novo: grandes extensões de terra, monocultura, mecanização do trabalho. O uso de agrotóxicos para garantir a produção em larga escala também não. Mas seus efeitos sobre a saúde têm estado cada vez mais em discussão. Desde 2009, o Brasil é o maior consumidor desses agroquímicos, o que mostra a cara do agronegócio: intoxicações, concentração de renda, transferência de recursos para empresas transnacionais, empobrecimento dos camponeses, produção de alimentos contaminados. A professora doutora do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Mies Bombardi realizou uma pesquisa sobre os casos de intoxicações e mortes por agrotóxicos no Brasil, com dados de 1999 a 2009.

Ela levantou que foram notificadas 25.350 tentativas de suicídio através do uso de agrotóxicos no período, e 1876 mortes foram registradas. “Uma grande parte dessas é suicídio, o que é mais assustador ainda. A escolha desse caminho é significativa, o trabalhador usa para causar sua própria morte o instrumento que o subordina, que o deixa doente, que pode levar ao endividamento”, aponta.
Larissa considera a situação dos agrotóxicos mais uma faceta da violência no campo, que afeta a todos: os pequenos produtores, os trabalhadores expostos diretamente ao veneno, os consumidores de alimentos. Ela explica que há alternativas, mas que elas passam necessariamente por uma mudança de modelo.

Brasil de Fato - O Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos em 2009. De onde vêm esses produtos?

Larissa Mies Bombardi - São seis grandes empresas estrangeiras – Monsanto, Syngenta/Astra Zeneca/Novartis, Bayer, Dupont, Basf e Dow – controlando mais de 70% do mercado de agrotóxicos no Brasil. Em poucos anos, elas tomaram pra si 127 outras empresas, isso é chocante. E essas empresas são de três países, Estados Unidos, Suíça e Alemanha. Segundo o Anuário do Agronegócio de 2010, as empresas que vendem veneno tiveram uma receita líquida de R$ 15 bilhões.

Com esse processo, aumenta ainda mais a transferência de renda do pequeno produtor para as empresas. Como é essa questão da subordinação da renda da terra?
Esse é um dos grandes dramas da agricultura camponesa hoje. Quando o produtor depende de um adubo químico, de um inseticida, de um herbicida, enfim, uma parte da renda que ficaria no bolso dele vai para o capital industrial. Muitas vezes o preço desses produtos é pautado pelo dólar. Há momentos em que o dólar aumenta, o pesticida aumenta. Mas o que acontece: todo produto agrícola, com exceção da cana, é determinado pela oferta e demanda. Então você não sabe quanto vai valer seu produto até a hora da venda, e ainda assim você recebe 30, 60 dias depois. Às vezes você pagou um valor muito alto pelo insumo e a produção não compensou. Então eles acabam recorrendo ao mercado financeiro para conseguir saldar dívidas. Acabam entrando num círculo vicioso por conta da dependência desses insumos. Aí a renda deles fica subordinada ao capital industrial, às indústrias de agroquímicos, e ao capital financeiro, muitas vezes juntos. Às vezes os bancos, inclusive o Banco do Brasil, emprestam o dinheiro, faz o sistema de crédito rural direto com as empresas que comercializam esses produtos. Então uma parte da renda, ao invés de ficar no controle do produtor – como fica quando ele investe em outros processos de adubação – é transferida para o capital.

Por que o agricultor não pode agregar esse custo no preço final do produto?
Ele não tem controle sobre o preço. Diferente de outros setores da economia, o agricultor não tem controle do preço do produto final, que é determinado pela oferta. Quando tem muito produto no mercado, o preço vai lá embaixo. Mas o preço dos agroquímicos não depende disso. Então a renda dos pequenos produtores muitas vezes fica reduzida, e eles trabalham muitos anos no prejuízo. Eles permanecem na terra porque a lógica é outra. E até porque eles não produzem apenas para o mercado. 

Você coloca que 80% dos agrotóxicos da América Latina são consumidos no Brasil. Por que isso ocorre? A produção agrícola justificaria esse uso intensivo?

Na verdade, 84% dos agrotóxicos da América Latina são consumidos no Brasil. E a gente não tem controle da quantidade, do tipo de produtos que são usados. O Brasil é muito permissivo, tem produtos que são proibidos na União Europeia e nos Estados Unidos há 20 anos e aqui eles podem ser usados. Tem um caso relatado por Wanderley Pignati, da UFMT, em Lucas do Rio Verde, de uma chuva de agrotóxicos que contaminou a população e os poços artesianos, e a prefeitura comunga com os grandes fazendeiros. O caso foi escondido, escamoteado...

Por que aumentou tanto o uso de agrotóxicos de 1999 a 2009?
Porque aumentou muito a produção de soja e de cana-de-açúcar. Agora o Brasil exporta etanol para mais de 40 países. Além do carro flex – que é dos anos 2000 pra cá e aumentou extraordinariamente a produção de cana – tem um consumo externo grande também. O que acontece é que o agronegócio está se expandindo. Pelo mapa em que se mede a utilização de agrotóxicos por município, dá pra ver que o agronegócio caminha em direção à Amazônia. Aumentou muito a área plantada com cana e soja. Individualmente, o algodão demanda mais agrotóxicos, mas se pensarmos na quantidade de soja plantada, ela congrega grande parte do que se consome de agrotóxico no Brasil, muito mais que a cana. É importante ressaltar que quase todos os produtos industrializados alimentícios que a gente come contêm soja. Além dos óleos, os biscoitos, vários tipos de farináceos, levam soja, então isso chega até a alimentação.

Seria possível produzir o mesmo tanto sem utilizar agrotóxicos?
Não nos moldes em que está organizada a produção hoje. Quando se tem uma monocultura, uma plantação de uma espécie só, fica muito fácil para os insetos virem e consumirem. Qual a diferença de uma monocultura e de uma agricultura que chamamos agroecológica? A agroecológica “imita” a natureza, há uma infinidade de espécies juntas, então não há um foco direto para o inseto se alimentar. Na monocultura, isso é impossível. Não dá pra pensar a monocultura sem o pacote agroquímico, essa é a verdade. Seria possível produzir isso tudo, mas não nesses moldes. Não dá pra ter grandes propriedades, não dá pra ser mecanizado, enfim, é um pacote que anda junto. Não dá pra produzir em larga escala nesses moldes sem agrotóxicos.

A maior parte dos alimentos consumidos no Brasil, cerca de 70%, vem da pequena agricultura. Eles estão livres dos venenos?
Cerca de um terço dos pequenos agricultores utilizam agrotóxicos. Eles são em alguma medida empurrados pra isso. O que acontece quando vamos comprar uma verdura, um legume, no mercado? Procuramos o maior e o mais vistoso. Assim os produtores são empurrados para produzir numa vistosidade em quantidade, que os leva ao uso de agrotóxicos. Quando falamos de pequena agricultura, falamos de bairro rural. É uma forma de organização no campo, são pequenos sítios em que as pessoas acabam plantando as mesmas coisas, por pura sociabilidade, por troca de informação. Um vizinho fala pro outro o que está rendendo e assim vai. Como as propriedades são pequenas e uma encostada na outra, se o vizinho usa agrotóxicos e você não usa, os insetos que atacariam a plantação dele vão atacar a sua. Por isso a agroecologia precisa ser pensada em conjunto com os vizinhos, não tem como manter um procedimento desse se quem está próximo não mantém, é muito complicado. Mas o grosso dos produtos com que nos alimentamos, os alimentos frescos, vem das pequenas propriedades.

Por que o agronegócio coloca que é ele que garante a produção de comida no mundo? O argumento deles é que é preciso produzir mais para alimentar as pessoas, para acabar com a fome, não é?
Esse é um argumento mentiroso. O problema de acesso ao alimento não é questão de produção, de quantidade de alimento, é questão de acesso à renda. A gente pode pensar na quantidade de desperdício, na quantidade de pessoas que têm problema de super alimentação. Seria possível produzir para todos, claro. Há propriedades agroecológicas em que a produtividade – medida pela produção por área – é maior que nos moldes tradicionais. Mas o problema é que nas propriedades agroecológicas a demanda de trabalho é muito intensa. E o capitalismo consegue avançar no campo quando o trabalho é mínimo, por isso mecanizam, para ter lucro. Quando o capital não produz diretamente, justamente porque algumas produções demandam muito trabalho, ele subordina a produção. É o exemplo da questão da uva: por que as indústrias vinícolas não produzem uva elas mesmas? Porque é uma quantidade de trabalho extrema. José Vicente Tavares dos Santos mostra que 80, 90% do preço do vinho é a uva. Como é o camponês que a produz, procura salvar a produção da geada de madrugada, ele arca com isso porque faz parte da vida cotidiana dele. Agora imagina uma empresa remunerar um funcionário para fazer isso? Não compensa para eles, é vantajoso para o capital se apropriar da renda ao invés de produzir alguns produtos.

Como é feita a mensuração da intoxicação por agrotóxicos hoje?
Tem o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas, o Sinitox, que é um instituto da Fiocruz, do Rio de Janeiro. A função do Sinitox é orientar as famílias, os agentes de saúde na forma de lidar com intoxicações. Eles são organizados em centros, não tem em todos os estados, que remetem as informações para o Rio de Janeiro. Mas eles não têm função de fazer um banco de dados. Já o Sistema de Informação de Agravos de Notificação, Sinan, é vinculado diretamente ao Ministério da Saúde, com o intuito de cadastrar os dados de intoxicações. Mas os dados são diferentes, esse é o problema. Não dá pra saber se um dado é o mesmo que está no outro, não há como cruzar os dados. Há números discrepantes, às vezes tem o dobro de intoxicações no Sinitox para o mesmo ano medido pelo Sinan. Apenas a partir de 2005 a notificação passou a ser compulsória, em 13 estados. Em janeiro deste ano a notificação de intoxicação por agrotóxicos passou a ser obrigatória, através do Sinan. Mas no período que analisei, de 1999 a 2009, pude perceber que os números não batem, essa compulsoriedade não era obedecida.

O que você observou em relação aos dados de intoxicação?
O que chama atenção é que em todos os estados, a não ser nos que o Sinitox não disponibiliza dados, há casos de intoxicação por agrotóxicos. É uma quantidade assustadora: 62 mil intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola. Se você pensar que há uma subnotificação – o próprio Ministério da Saúde indica que talvez os casos sejam 50 vezes maiores que os notificados – o número fica maior ainda. E isso levando em conta que são casos de intoxicação aguda, quer dizer, de casos em que a pessoa entrou em contato com agrotóxico e passou mal. Não estamos falando de doenças crônicas, como o câncer.

Os efeitos agudos podem chegar inclusive à morte?
No período analisado, foram notificadas 25.350 tentativas de suicídio através do uso de agrotóxicos, e 1876 mortes foram registradas. É um escândalo. Dá quase 180 mortes por ano. E uma grande parte dessas é suicídio, o que é mais assustador ainda. Cerca de 75% das mortes ocorrem por suicídio, em praticamente todos os estados. Há hipóteses ainda preliminares para entender isso. Toda a literatura que discute intoxicações por agrotóxicos mostra que a exposição ao veneno leva a alterações neurológicas, a neuropatologias. Depressão e ansiedade são as mais leves. Isso são estudos não só no Brasil, tem também pesquisas no Canadá, Estados Unidos e Espanha que indicam isso. É indecente pensar nessa quantidade de pessoas que se matam usando os agrotóxicos. Por que o agrotóxico para se envenenar, por que usar ele como arma? É uma morte agonizante, os relatos mostram isso. A escolha desse caminho para mim é significativa, o trabalhador usar para causar sua própria morte o instrumento que o subordina, que o deixa doente, que pode levar ao endividamento. Parece aquela história da Índia em que os camponeses se matavam usando o veneno da própria Monsanto, no processo de envenenamento com o algodão transgênico.

São notificações dos trabalhadores ou incluem também suas famílias?
São dos trabalhadores que tiveram contato direto com o veneno. Na verdade, são notificados aqueles que foram levados a um serviço de saúde. Se ele sentiu enjoo, náusea, vermelhidão na pele e nos olhos e não foi para um serviço público, não foi sequer notificado. Mas é possível que os familiares sejam também intoxicados. Isso é uma coisa que se leva pra dentro de casa.

Quem são esses trabalhadores atingidos pelos agrotóxicos?
Desde o camponês pequeno proprietário até um trabalhador contratado por empresas. Desde um piloto de avião que vai pulverizar agrotóxicos até um pequeno produtor, todos estão expostos aos agrotóxicos. E há uma questão nisso: eles conhecem pouco os procedimentos para se proteger. Além disso, os equipamentos são super desconfortáveis, incomodam muito no calor. Mesmo os equipamentos de proteção indicados para a aplicação de agrotóxicos já não são mais plenamente suficientes. Precisamos tomar cuidado com o discurso de culpabilização do trabalhador pelo acidente. Nos boletins de ocorrência que relatam acidentes de trabalho sempre há referências à distração do trabalhador como causa do acidente, como se fosse culpa dele. Como se ele fosse uma máquina de trabalho, que pudesse ficar atento 100% do tempo. Tem muito acidente da construção civil, em que o trabalhar cai, e aparece como descuido. Esse é um discurso que está presente nas indústrias de agrotóxicos. Não está no controle do trabalhador evitar o acidente.

É possível saber como o consumo indireto de agrotóxicos, pela alimentação, pode ter impactos na saúde?
O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), ligado à Anvisa e ao Ministério da Saúde, identifica os tipos de agrotóxicos presentes nos alimentos e os efeitos disso. Mas por exemplo, o agrotóxico que na Monsanto eles chamam de “Roundup”, é um herdeiro do agente laranja, que é um desfolhante químico que foi usado na guerra do Vietnã. Ele é absorvido pela pele e se instala na gordura. Ele passa inclusive pela placenta. Tem gente até hoje que nasce, no Vietnã, com má formação por causa disso. Mas precisamos de mais pesquisas para saber como a gente se contamina ingerindo esses alimentos intoxicados.

A senadora Kátia Abreu disse, em cena registrada no filme O veneno está na mesa, de Sílvio Tendler, que os pobres devem comer com agrotóxico e quem tem opção pode comer orgânico. Como contornar essa lógica?
Por que o orgânico é mais caro ainda hoje? Não é porque é mais caro produzir orgânico, nem sempre sua produção é mais cara. O que acontece é que ele é mais raro. Tem um conceito que vem de Marx que é a renda de monopólio. Ele utiliza o exemplo do vinho do Porto: por que se paga caro por ele? Porque Porto só existe em Portugal, só lá produz vinho do Porto. Quando o produto é raro, o preço dele é elevado. Quando surgiram as verduras hidropônicas o preço era alto, havia pouco, depois foi sendo mais produzida e o preço baixou. Os orgânicos ainda são produzidos em menor quantidade do que a agricultura convencional, por isso os produtos são mais caros. Não necessariamente porque demanda mais investimentos para produzir. Mas se chegamos num nível ótimo de segurança alimentar, isso não vai existir.

O que é possível para diminuir o uso de agrotóxicos?
A primeira coisa é a regulamentação. Outra coisa é a necessidade de repensar o padrão. Pensar o que a gente quer para o Brasil, inclusive no padrão de energia. Por exemplo, quando há a transformação da cana em energia, eles chamam de biocombustível, que é um nome bonito, “bio” é vida. Mas não se trata disso: é a transformação de terra e alimento em energia. Temos que mudar o padrão energético. Não podemos ficar pensando alimento como commodity. O problema é aquilo que temos por alimento hoje é mercadoria, negociada na bolsa de mercadoria e futuros, é trocada como qualquer outra coisa. Perdeu o sentido de alimento. O agronegócio tanto é negócio que a Cosan está junto com a Shell agora. Não interessa se é um combustível limpo, interessa é o lucro. O etanol não substitui o combustível fóssil, nem potencialmente. Ou seja, não é alternativa real. Para se ter uma ideia, se os Estados Unidos fossem mudar seu modelo para um tipo de energia gerada através de produtos agrícolas, precisaria de uma área e meia do país. Então na verdade esse tipo de coisa beneficia a um grupo social, os usineiros, os grandes fazendeiros. É um nó para a humanidade. Teria que ter a transformação de todo o modelo. Essa produção agropecuária em larga escala só é vantajosa para um grupo. A grande produção de soja também beneficia apenas um grupo, para nossa alimentação isso é nefasto, para as crianças mais ainda. É uma escolha de caminho. Ainda que seja difícil controlar a situação do agronegócio, tem coisas que são permissivas demais. Para mim, esse caso dos agrotóxicos é assassinato no campo, uma forma de violência indireta, silenciosa e que nos ataca a todos. E quem pode se livrar disso? Quem tem dinheiro pra comprar outra coisa. É uma indecência, um descontrole total. É uma conversa que está começando agora, muito em função dos movimentos sociais organizados que estão puxando isso.

É como se os agrotóxicos fossem uma pontinha pela qual podemos puxar o modelo do agronegócio?
Quando analisamos o mapa dos agrotóxicos no Brasil vemos uma fotografia do agronegócio, do modo como o capitalismo se expande na agricultura. Que recoloca o Brasil numa posição de agroexportador e consumidor de produtos que são inventados em outros países, e a gente fica pagando royalties e sustentando essas mega transnacionais. A utilização vem de muito tempo, mas a atenção vem mais de agora, infelizmente é atual. Isso sem falar nos transgênicos, que enredam o agricultor numa forma sem fim, é quase uma forca. Na medida em que ele compra o transgênico num ano, tem que comprar no ano seguinte, tem que comprar o veneno que adapta a ele e entra num círculo vicioso. E a produtividade do transgênico é grande no primeiro e segundo ano e depois diminui.

Esse pacote ainda é herança da “revolução verde”?
O discurso da revolução verde é que precisamos de maior produção, com pacote tecnológico e químico para ter mais comida para a humanidade. Faz quantos anos isso? 40, 50, 60? Não diminuiu a forme no mundo por causa disso. O Brasil é um dos países que mais tem terra ociosa. Ainda tem muito latifúndio improdutivo. Não é produção o problema, é distribuição de renda. Se pensarmos nas terras agricultáveis do mundo, temos capacidade para alimentar a humanidade. Atualmente, não é a lógica do atendimento das necessidades internas. O Brasil é maior exportador de carne, tem quase a mesma quantidade de bois e de pessoas no Brasil – não é mais, como tem um mito por aí – mas é quase mesma proporção, e mesmo assim a carne é muito cara aqui. É o modelo, baseado em um mercado internacionalizado, que não prioriza a soberania alimentar. Dá para compararmos com a indústria automobilística: foi dada uma grande força para ela se desenvolver nos anos 50 e 60 para poder sustentar a indústria petroleira e de carros e agora vemos seus reflexos. É o mesmo modelo subordinado, de inserção subordinada no mercado internacional e que atinge diretamente a todos. Essa forma de o capitalismo se reproduzir vai acontecer de forma cruel nos países em que tem possibilidade de isso acontecer. Uma agricultura nesse modelo não acontece na Europa.

FONTE: Joana Tavares - BRASIL DE FATO

 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Direito de encerrar a vida?

Armond e Dorothy Rudolph temiam um declínio lento e um sofrimento prolongado em sua terceira idade, o que fez com que se juntassem a uma organização que apoia o direito de terminar a vida quando a doença ou dor ficam grandes demais. Eles participaram de reuniões e rascunharam uma declaração antecipada de vontade rejeitando tratamento de suporte à vida no caso de enfermidades fatais e irreversíveis. Eles deram folhetos sobre o tema aos filhos e discutiram os planos com eles.

Porém, anos mais tarde, quando o casal finalmente decidiu desistir desta vida, tudo veio abaixo. Depois que os Rudolphs começaram a recusar a alimentação, o lar para terceira idade onde moravam em Albuquerque, Novo México, tentou despejá-los. Quando a família recusou, os gerentes ligaram para a emergência e tentaram transportar o casal idoso para um hospital.
Os Rudolphs deixaram o local e morreram numa casa alugada, cercados pelos filhos e cuidados por profissionais especializados em pacientes terminais.
Agora, seu caso se tornou um ponto de convergência para quem apoia a autodeterminação no fim da vida e levantou questões espinhosas sobre os direitos dos residentes em lares para a terceira idade e o profundo desconforto da sociedade com a aceleração da morte.
“O maior medo deles era terminar numa clínica de repouso”, disse o filho do casal, Neil Rudolph, professor de química aposentado de Alamosa, Colorado.
“Aquilo era o inferno para eles, ter pessoas tomando conta deles, não ter independência”.
Da forma como aconteceu, os Rudolphs tiveram uma longa e satisfatória terceira idade em Albuquerque. Eles faziam jardinagem, foram voluntários dos escoteiros e trabalharam como líderes numa igreja presbiteriana. Quando sua casa grande e ajardinada ficou difícil demais para manter, construíram uma menor numa cidade vizinha.
Por fim, eles se mudaram novamente para uma comunidade de aposentados, mas, segundo o filho, “física e mentalmente, eles começaram a descer ladeira abaixo”.
Em outubro, eles entraram num lar para terceira idade chamado Village at Alameda. Armond Rudolph, 92 anos, sofria de estenose espinhal e Dorothy Rudolph, 90 anos, praticamente não se mexia. Ambos apresentavam sintomas de demência precoce.
Em janeiro, eles puseram em ação o plano de parar de comer e beber. A prática é uma forma legal de acelerar a morte sem drogas nem violência, geralmente durando cerca de duas semanas.
Ninguém sabe quantas pessoas escolhem dar fim à vida desta forma, mas uma pesquisa com enfermeiros especializados em pacientes terminais, publicado em The New England Journal of Medicine, em 2003, constatou que a maioria dos enfermos que deliberadamente recusavam comida e líquidos tiveram “uma boa morte”, com baixos níveis de dor e sofrimento.

Neil Rudolph, sua irmã e cônjuges vieram do Colorado para ficar com o casal e chamaram uma organização de cuidados paliativos. “Todos nós discutimos o que isso significava e se eles tinham certeza do que faziam”. Quando os pais confirmaram o desejo, ele os ajudou a escrever uma declaração afirmando sua decisão e depois avisaram os administradores do lar para terceira idade sobre os planos. Segundo o filho, os administradores disseram à família que os Rudolphs teriam de sair no dia seguinte.
A direção do lar não quis dar entrevistas, mas afirmou por e-mail que, quando um residente “exige disposições alternativas, atenção médica ou um nível de cuidado além das nossas capacidades, temos a obrigação de notificar um provedor médico”.
A Fundamental Long Term Care, empresa proprietária do lar e de mais de cem outros em 14 estados, não respondeu aos pedidos de entrevista.
“Esta é a primeira vez que ouvimos falar de uma situação semelhante”, disse por e-mail Karl Polzer, diretor de políticas do National Center for Assisted Living. “É importante que as comunidades para terceira idade tenham o direito de escolher se esse tipo de ação é condizente com sua filosofia e valores”.
Neil Rudolph reclamou aos administradores do Village at Alameda que seus pais, no quarto dia do processo, não tinham aonde ir. Ele também salientou que o contrato exigia um aviso de alta com 30 dias de antecedência.
No dia seguinte, os administradores chamaram o serviço de emergência, relataram uma tentativa de suicídio e disseram para os paramédicos levarem os Rudolphs a um hospital. Chegaram equipes do corpo de bombeiros de Albuquerque e do serviço de ambulância local. Sem saber o que fazer, eles ligaram para um médico do departamento de medicina emergencial da Universidade do Novo México, parte de um consórcio que consultam quando encontram uma situação fora do padrão.
Sua confusão ilustra a ambiguidade cercando o ato de parar voluntariamente de comer e beber.
Sob a lei federal americana, essa atitude é legal em todos os estados, afirma Charles Sabatino, diretor da comissão sobre lei e envelhecimento da Associação Americana de Advogados. “A Suprema Corte reconheceu o direito de que uma pessoa capacitada recuse qualquer intervenção médica, incluindo via tubo de alimentação”.
O direito também foi estabelecido pela Lei Federal de Autodeterminação do Paciente. Nem um diagnóstico de demência significa necessariamente que alguém não tenha capacidade legal para decidir parar de comer e beber, asseguram especialistas jurídicos.
Porém, exercer tal direito pode ser difícil. “Embora a teoria possa ser clara, a execução pode ser complicada”, disse Sabatino. Um lar com afiliação religiosa pode recusar, os trabalhadores podem não ficar à vontade e tribunais ou agentes da lei podem querer se envolver.
O médico enviado pela Universidade do Novo México, Dr. Drew Harrell, falou com todos os envolvidos, incluindo discussões demoradas e em separado com Dorothy e Armond Rudolph.
“Eles foram capazes de explicar de forma muito apropriada e eloquente seus desejos. Eles não achavam que precisavam ir para um hospital. O casal detalhou que queria controlar os assuntos ligados ao fim de suas vidas”, declarou.
Tranquilizado de que compreendiam as implicações da decisão, “determinei que nossos serviços não eram necessários”. Os Rudolphs assinaram papéis mostrando que declinaram o transporte.
Preocupados com mais conflitos, os parentes transferiram o casal para uma casa alugada em Albuquerque. Mesmo com visitas diárias, ou duas vezes ao dia, de enfermeiros especializados em tratamento paliativo, a vigília 24 horas era exaustiva, “mas satisfatória”, disse Neil Rudolph. “Era isso que eles queriam e pudemos ajudá-los a executar seus planos”.
Depois de ficar inconsciente, Armond Rudolph morreu primeiro, dez dias depois de dar início ao processo; sua esposa o acompanhou no dia seguinte.
“Eles tiveram a morte digna e pacífica que buscavam”, Neil Rudolph declarou recentemente a jornalistas. “Contudo, isso também é uma fábula moral”.
O grupo Compassion & Choices, que defende a expansão de opções para o fim da vida, fez circular um apêndice que pode ser anexado aos contratos dos lares para terceira idade. Ele afirma, em parte, que “o lar respeitará as escolhas para o fim da vida do residente e não impedirá nenhum tipo de tratamento ou não-tratamento, livre e racionalmente escolhido pelo residente”.
O National Center for Assisted Living disse que pretende se reunir com o Compassion & Choices para discutir a questão.


FONTE The New York Times News Service/Syndicate

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

“Proletários do mundo, perdoem-me!”

No dia 1º de agosto de 1991, o famoso monumento a Karl Marx, que se eleva sobre o centro da cidade de Moscou, apareceu com os seguintes dizeres pintados em tinta vermelha: “Proletários do mundo, perdoem-me!”
 
Era uma irônica alusão ao chamado aos trabalhadores contido no Manifesto do Partido Comunista, publicado em 1848 na Alemanha por Marx e Friedrich Engels.

A ideia de comunismo concebida originalmente pelos intelectuais europeus encontrou abrigo espiritual na Rússia – que se tornou “a pátria do proletariado mundial”.

Os comunistas que viviam na “casa da revolução mundial” se orgulhavam de seu papel na história e no cenário geopolítico.

Vinte anos após o colapso do maior país comunista do mundo, o Partido Comunista permanece um dos mais influentes do país.

Em números de parlamentares, só fica atrás do partido Rússia Unida, dos últimos ocupantes do Kremlin, Dmitri Medvedev e Vladimir Putin.

Mas a maioria dos analistas está de acordo com a opinião de que o partido não tem futuro político na Rússia.
Os filiados do PC de hoje pertencem a um setor determinado, mas em envelhecimento, da população. Se tudo continuar como está, os simpatizantes da sigla tendem a desaparecer.

A maioria dos simpatizantes da oposição na Rússia é nacionalista ou a favor de ideias ocidentais.
Existe, sim, muita nostalgia na Rússia pela antiga União Soviética, mas não da igualdade indiscriminada, das filas e da doutrinação política: os cidadãos sentem falta do tempo em que a União Soviética era uma nação poderosa, respeitada e temida em todo o globo.

Muitos especialistas crêem que os comunistas poderiam ter retomado o poder nos anos 1990, quando a Rússia se encontrava em meio à turbulência política, se tivessem um líder carismático líder.

Entretanto, a firme liderança de Genady Ziuganov assegurou o estabelecimento do capitalismo e de um sistema de democratização na Rússia.

Os eventos históricos que se desenrolaram na “casa da revolução” determinaram o destino do comunismo no resto do mundo.

Europa e Ásia Central
Nos países que conformavam as ex-repúblicas sob a batuta de Moscou, o que há de comum é a tentativa de evitar a influência da ideologia comunista.

A única ex-república soviética a manter o comunista é a Moldávia. Seu ex-presidente entre 2001 e 2009, Vladimir Voronin, foi o primeiro chefe de Estado comunista democraticamente eleito após a dissolução do bloco soviético.

Mas mesmo seus seguidores não são comunistas linha-dura no sentido tradicional: não desejam o retorno à vida soviética. Parte dos ativos do país foi privatizada e a melhor definição da estrutura sócio-econômica do país é capitalismo com um toque pós-soviético.

O país que mais preservou os valores e o estilo de vida soviéticos é Belarus, a “linha de montagem” do antigo bloco comunista.

A liberalização econômica e a ruptura dos antigos laços econômicos atingiram duramente o país, que não possuía recursos naturais.

Durante a 2ª Guerra Mundial, o país amargou a ocupação nazista, insuflando uma desconfiança em relação à influência ocidental na psique nacional.

Mesmo assim, o comunismo tem desvanecido e o presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko – que chegou ao poder impulsionado por esse sentimento antiocidental – nunca invocou as ideias de Marx e Lênin.
A ideologia predominante é a do paternalismo estatal com liderança carismática e ditatorial.

Nos países da Ásia Central, que combinam capitalismo, autoritarismo secular e o uso oportunista de certos elementos islâmicos, os governos mantêm laços mais próximos com Moscou que com os países ocidentais – mas isso é porque a Rússia não os incomoda com questionamentos a respeito de direitos humanos.
Na Ucrânia, nos países do Cáucaso e nos Bálticos, o comunismo já não é digno de menção. As disputas políticas continuam nesses países, mas por forças inteiramente distintas.

No Leste Europeu, onde comunismo foi implantado força, a ocupação e a humilhação nacional, a maioria das populações nunca apoiou a ideologia.

A União Soviética provia os recursos para os seus “satélites” e permitia, neles, um grau de liberdade mais que em seu próprio solo. Mesmo assim, as tentativas de se livrar do jugo de Moscou só foram suprimidas com a intervenção do Exército Vermelho na ex-Alemanha Oriental, a Hungria e a ex-Tchecoslováquia.

Há partidos pós-comunismo em todos os países do antigo Pacto de Varsóvia, que advogam uma plataforma de esquerda moderada e europeia. Esses partidos têm tido espaço na Polônia, Hungria, Romênia, Eslováquia e Bulgária, mas não há possibilidade de voltar ao sistema político socialista de outrora.

China e Ásia
Se a revolução russa já não tinha grande relação com os ideais da ideologia marxista, a chinesa certamente não tinha. A China nunca teve um proletariado capaz de receber desempenhar a função histórica que lhe cabia segundo Marx.

Mao Tse Tung chegou ao poder em 1949 vindo da classe camponesa. Considerava-se líder de um “vilarejo global” em uma luta contra a “cidade global” e nunca escondeu sua rejeição à civilização urbana.

O seguidor de Mao no Camboja, Pol Pot, levou os ensinamentos de seu mestre à ação lógica, dizimando a população urbana do país.

Mao combinava a ideologia marxista com um nacionalismo chinês e um despotismo asiático, exemplificados pela coletivização e a obediência. O indivíduo era um coágulo no sistema e todo interesse material era substituído por um profundo sentimento de conformidade.

No Vietnã, o vizinho mais próximo da China, o caminho do comunismo foi semelhante.
A Mongólia foi o único país a estabelecer o socialismo ao estilo soviético antes da 2ª Guerra Mundial. Depois da queda da União Soviética, o país rejeitou o modelo e embarcou em um caminho de reformas de mercado e democracia multipartidária.

Hoje, a Coreia do Norte é o único bastião do comunismo stalinista. O país vive imerso em um sistema onde o mercado é inexistente e a ideia de coletividade é tão forte que os indivíduos são proibidos de cobrir as janelas com cortinas.

A doutrina oficial norte-coreana não se baseia nos princípios marxistas-leninistas, mas no espírito de autoconfiança. Na prática, isso se traduziu no desejo de Kim Il Sung e seu sucessor, Kim Jong Il, de se manter seu domínio sem se submeter a ninguém.

África e América Latina
Na África, a realidade social não poderia ser mais diferente dos cenários elaborados por Marx e Engles, que se debruçaram sobre os problemas das sociedades industriais.

Em parte, a aproximação dos países africanos com a URSS foi motivada pela rejeição ao imperialismo histórico das potências europeias.

Aos líderes anticolonialistas africanos também apetecia a ideia de modernizar seus países através de ditaduras. Eles sabiam pouco sobre as ideias de Marx e Lênin, mas entenderam que bastava dizer a palavra mágica – “socialismo” – para estar na lista dos receptores de armas e recursos da União Soviética.

Isto gerou todo tipo de confusão. Quando a Etiópia e a Somália entraram em guerra, por exemplo, ambos os países se consideravam socialistas. Levou tempo até Moscou decidir quem apoiar: a Etiópia.

Na América Latina, de forma semelhante ao que ocorreu na África, o apoio da URSS foi usado na Guerra Fria contra outra potência vista como imperialista – os Estados Unidos.

Mas muitas revoluções latino-americanas não foram diretamente inspiradas pelo marxismo. A Cubana começou como uma insurreição contra a autoridade vigente.

Fidel Castro era popular em Moscou tanto quanto Yuri Gagarin, o primeiro homem no espaço. O líder cubano da “ilha da liberdade” mostrava que o comunismo poderia ser jovem, cheio de vida e democrático.

Ao longo dos anos, Cuba perdeu a vitalidade e passou a ser um país governado por uma geração de octogenários. É possível que se torne o país a martelar o último prego no caixão do comunismo global.


FONTE: BBC BRASIL


Pensamento,

Na verdade o mundo teve que escolher entre o "mal certo" e o "bem duvidoso".
Optou pelo "mal certo", ou seja, "na dúvida, melhor não arriscar".

terça-feira, 9 de agosto de 2011

DIAMANTE DE SANGUE!

Um programa da BBC descobriu a existência de um campo de tortura na região de Marange, rica em minas de diamantes, no Zimbábue.

O programa Panorama ouviu depoimentos de vítimas de espancamentos e violência sexual no local.  

O governo do Zimbábue foi procurado pela BBC mas não deu resposta oficial às denúncias.
As informações foram divulgadas em um momento em que a União Europeia tenta liberar parte da exportação de diamantes vindos do Zimbábue. A comercialização das pedras do país está sob embargo.
Em documento interno do bloco, ao qual a BBC teve acesso, a União Europeia diz que duas minas na área passaram a obedecer os padrões internacionais, e quer que os diamantes destas áreas sejam aprovados imediatamente para exportação - o que suspenderia parcialmente um embargo imposto em 2009.

O embargo passou a vigorar por determinação do chamado Kimberley Process (KP), organização internacional que fiscaliza o comércio de diamantes. O órgão denunciou assassinatos e abuso por parte das forças de seguranças do Zimbábue nos campos de diamantes de Marange. O KP foi criado pela indústria de diamantes, governos de vários países e organizações não governamentais para evitar a entrada no mercado de diamantes vindos de áreas de conflito.

Chicotadas
Testemunhas afirmam que os campos de tortura estão em atividade há, pelo menos, três anos.
Em Marange, polícia e militares recrutam civis para procurar diamantes de forma ilegal, e trabalhadores que exigem uma fatia maior dos lucros são levados para os campos de tortura. Civis flagrados procurando diamantes por conta própria também são levados para os campos.

O principal campo descoberto pela reportagem é conhecido na região como "Base Diamante".
Segundo testemunhas, o campo fica em uma área afastada. Ele é formado por barracas militares em uma área sem cobertura, cercada por arame farpado, onde prisioneiros eram mantidos.

Este campo fica perto de uma área conhecida como Zengeni, em Marange - uma das mais importantes áreas de exploração de diamantes do mundo. O campo fica a cerca de 1,6 quilômetro da mina Mbada, que produz diamantes que a União Europeia quer aprovar para exportações.

A companhia responsável pela mina é chefiada por um amigo pessoal do presidente do Zimbábue, Robert Mugabe.

"É um local de tortura onde algumas vezes os mineiros não conseguem andar por causa dos espancamentos", disse à BBC uma das vítimas, libertada do campo principal em fevereiro.

"Eles nos davam 40 chicotadas pela manhã, 40 à tarde e 40 à noite", disse o homem, que ainda não conseguia usar um dos braços por causa dos espancamentos, e mal conseguia andar.

"Eles usaram pedaços de madeira para me bater embaixo dos meus pés, enquanto eu estava no chão. Eles também acertaram meus tornozelos com pedras."

Ele e outros homens foram mantidos como prisioneiros no campo por vários dias antes da chegada de outros prisioneiros. Mulheres eram liberadas mais rapidamente, frequentemente depois de estupros, segundo testemunhas.

Todos os prisioneiros destes campos conversaram com a reportagem da BBC sem se identificar.

Um ex-integrante de uma unidade paramilitar da polícia que trabalhou no campo principal, em 2008, disse à BBC que torturou prisioneiros e também usou cães, que eram estimulados a atacar os detidos no local.
"Eles algemavam o prisioneiro e soltavam o cachorro, para mordê-lo", contou.

O homem, que também falou à BBC sem se identificar, contou ainda que uma mulher foi mordida no seio pelos cães enquanto trabalhava no acampamento. "Não acho que ela sobreviveu", disse.

Proibição
O KP havia pedido à polícia do Zimbábue para garantir a segurança da área, mas testemunhas disseram à BBC que a polícia e os militares do país é quem gerenciam os campos de tortura.

Nick Westcott, um porta-voz do grupo de trabalho em monitoramento do KP, disse que a descoberta dos campos "é algo que não foi relatado ao Processo Kimberley".

Em junho, o presidente do KP, Matieu Yamba, anunciou formalmente que a proibição da exportação de diamantes de duas minas importantes de Marange tinha sido suspensa, uma decisão que a União Europeia não aceitou.

Agora a União Europeia lançou uma proposta que visa acabar com o impasse. A proposta concorda parcialmente com a suspensão da proibição, mas insiste que o monitoramento internacional deve continuar em toda a região de Marange.


FONTE: BBC BRASIL



Pensamento:

Não conseguimos nem conscientizar as pessoas para não jogar lixo no chão! Imagine cobrar delas que deixem de comprar diamantes de áreas de conflito e escravidão ou que governos e governantes deixem de fazer fortunas as custas da vida de milhares de seres humanos que tiveram como único erro, nascer na África.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

EUA no fundo do poço?

A seguir entrevista com o carioca José Alexandre Scheinkman, professor do Departamento de Economia da Universidade de Princeton. Scheinkman avalia que o acordo, tal como acabou desenhado, equaciona o problema da dívida até o próximo mandato presidencial, ao viabilizar novos aumentos do teto daqui por diante. Por outro lado, o resultado final deixa dúvidas sobre a natureza dos cortes de despesa que terão que ser feitos.

Qual é a sensação para alguém que acompanhou de perto a euforia da campanha de Barack Obama vê-lo chegar ao fim do primeiro mandato tão fragilizado politicamente?
Em primeiro lugar, acho que não é óbvio que ele esteja tão fragilizado assim. É evidente que, qualquer que seja o presidente dos Estados Unidos, se a economia vai mal ele vai ter problemas. Mas é cedo para saber quem ganhou e quem perdeu politicamente. Não é um acordo de que eu, por exemplo, goste muito. 

Para o diretor do Center for Economic and Policy Research de Washington, Mark Weisbrot, Obama cometeu ‘suicídio político em nome do bipartidarismo’ ao aceitar o que chamou de ‘extorsão republicana’ e não elevar impostos para os mais ricos. Ele tem razão?
Acho que os republicanos, de fato, jogaram um jogo muito duro, parecendo não se importar com as consequências para a economia. A impressão que se tinha é a de que eles diziam assim: "Ou passa dessa maneira ou não passa". E ninguém sabe o que aconteceria se os EUA tivessem que dar um default nos seus bonds. Ninguém conhece as consequências porque nunca aconteceu. Mas era um risco que a maioria dos economistas, mesmo os mais conservadores, que tinham simpatia pelos republicanos, achavam que não valia a pena correr. Mas há uma parcela do Partido Republicano que simplesmente ignora a opinião dos experts. Pessoas que não acreditam nem na teoria da evolução, em mudança climática, nada (risos). O drama sobre o teto da dívida simplesmente não os afetava.

Faltam adultos no Partido Republicano, como disse Thomas Friedman?
Uma parte dos republicanos realmente estava convencida de que a ideia de que haveria consequências ruins para o mercado financeiro era uma criação do Obama. Simplesmente porque Obama disse, aquilo tinha que ser falso. Não é que todos os economistas soubessem que, se o teto da dívida não fosse elevado, as consequências seriam graves. Mas em economia tem coisas que a gente não sabe e prefere não pagar para ver, perigos que não se deve correr. 

A redução de US$ 2,2 trilhões nas despesas públicas em um país em frágil recuperação econômica e com 25 milhões de desempregados era a melhor opção?
Eu gostaria que tivesse sido feito o que aparecia nas discussões iniciais: reduções que afetassem as despesas no longo prazo. E menos corte de despesas correntes ou de investimentos no presente. Exatamente porque a economia está fragilizada. Seria mais efetivo se o governo tivesse conseguido, por exemplo, reduzir o crescimento das despesas médicas no longo prazo ou adiasse a aposentadoria dos mais novos. Uma das coisas interessantes que foram feitas no Brasil, no início do governo Lula, foi exatamente isso: mudanças fiscais que afetaram o equilíbrio de longo prazo durante a reforma da Previdência. Quase ninguém se lembra dessa que foi uma das primeiras medidas do ministro Palocci, e acho que se subestima quanto isso ajudou a economia brasileira. Conseguiu-se melhorar a situação fiscal num momento em que a economia brasileira também estava fragilizada - dando aos investidores uma visão de que, no futuro, a situação melhoraria. Uma sinalização dessas teria sido mais adequada no caso americano. Quando você olha as contas dos EUA no longo prazo, fica claro que é preciso cortar gastos, mas também aumentar impostos. A única maneira de se resolver é com um plano que adie o aumento de impostos - não eleve agora, porque isso comprometeria a recuperação - e reduza despesas ligadas aos programas permanentes, como saúde e previdência. Assim se acerta a situação fiscal em um momento de crise. 

O povo americano prefere corte nos gastos sociais ou com a guerra?
Os cortes anunciados incluem o fim da ocupação do Iraque e a diminuição do envolvimento no Afeganistão, especialmente a guerra do Iraque. Depois que ficou demonstrado que ela foi baseada em informações no mínimo duvidosas, talvez um pouco mais maliciosas que isso, ela se tornou uma guerra muito impopular. A do Afeganistão tem aspectos diferentes: tinha maiores justificativas no começo e havia uma ideia de que se os EUA abandonassem o país ele se tornaria um centro de treinamento para a Al-Qaeda. Mas agora, especialmente após a morte de Bin Laden, há mais apoio à redução de gastos lá. 

O rebaixamento da nota de risco da dívida americana preocupa? Quais podem ser as consequências?
A nota do Japão foi rebaixada e os títulos japoneses continuam pagando muito pouco. Não é claro que haja efeito imediato nisso. Em primeiro lugar, as agências de risco perderam muito do prestígio com a conduta delas durante a bolha de crédito. Um sujeito no mercado hoje em dia não fica pensando: "O que a Standard & Poors ou a Moody’s acham deste papel?" Ele não vai definir sua escolha por determinado título pela nota da agência, porque sabe que no passado confiar na Moody’s, na Standard & Poors ou na Fitch faliu muita gente. É visível a falta de influência delas hoje entre os agentes do mercado, e mais ainda nos meios acadêmicos.

Alguns analistas já falam em ‘década perdida’ nos EUA. Os próximos anos serão só de baixo crescimento ou há risco de recessão?
Esse tipo de crise bancária profunda que houve nos EUA, como outras que aconteceram no mundo, é seguido por um período longo de falta de crescimento. Essa é a experiência que a gente tem. Mas há coisas nos EUA que surpreendem. O país têm um poder de criar inovação e tecnologia realmente único. E isso pode fazer com que esse período seja mais curto. É impressionante notar, nessa que tem sido chamada de "década perdida" americana, o crescimento das firmas de redes sociais, por exemplo. Veja também que, cinco anos atrás, Nokia, Ericsson, Sony e companhias coreanas dominavam o sistema telefônico. Hoje, em todos os lugares do mundo, as pessoas estão usando Apple e Android, o sistema da Google. A inovação é uma coisa muito dinâmica nos EUA. Essa é uma das coisas que temo nesse corte de despesas: que ele seja tão profundo que comece a afetar essas estruturas. Mas isso não deve ocorrer nos próximos 5 ou 10 anos, talvez em 30 ou 40. Os EUA se beneficiaram tremendamente de gastos governamentais que criaram toda essa estrutura de pesquisa e de desenvolvimento em universidades, laboratórios nacionais e empresas, que se aproveitaram disso. A Apple, o Google e a Microsoft não seriam o que são se não tivesse havido esse esforço do governo lá atrás - em pesquisa e conhecimento. 

Os efeitos da crise já se fazem notar no mundo acadêmico que o sr. frequenta?
Ainda não. Em geral as universidades, como Princeton, têm duas fontes de recursos: a governamental e o seu endowment, a sua riqueza própria, que em geral é investida em ações e firmas privadas. Com a crise, o endowment caiu. Mas não é um efeito que tenha comprometido o financiamento de pesquisas. Há uma certa diminuição, digamos, do luxo, mas as coisas essenciais estão sendo mantidas. 

Em que medida a possibilidade de os EUA darem um calote na dívida abalou a confiança do cidadão americano médio?
Acho que há uma grande desconfiança dos americanos em relação ao meio político. E o processo de discussão do acordo deixou-os mais insatisfeitos ainda. Mas pelo menos se chegou a uma decisão, obtida de forma democrática, usando as regras do jogo. Você pode ficar insatisfeito com a conduta do governante ou de algum senador, mas ficou clara a robustez do sistema. O que foi feito até agora foi resolver o problema da dívida: se a gente lê como foi desenhado o acordo, é muito improvável que esse limite da dívida não possa ser aumentado até o próximo mandato presidencial. Daqui para a frente, a Câmara até pode negar novos aumentos, mas o presidente terá direito a veto e, para derrubá-lo, a maioria da oposição teria que ser muito maior. Então, esse problema do teto da dívida foi equacionado. O que não se sabe é como esses cortes de despesas vão acontecer. Vai ser formada uma comissão que irá propor ao Congresso e este aprovará ou rejeitará a proposta. Por outro lado, se rejeitar, ocorrerão os chamados "cortes automáticos" - que no acordo se concentram muito em defesa e em programas sociais. Como os democratas não querem reduzir programas sociais e os republicanos, os de defesa, há uma espécie de equilíbrio do terror. 

Uma Europa também em crise volta-se contra imigrantes. Nos EUA parece ter ganhado força certo conservadorismo em relação a temas como o aborto, a eutanásia, etc. O sr. nota esse movimento?
O Tea Party, que praticamente tomou conta do Partido Republicano hoje em dia, é realmente muito conservador. Aliás, eu já nem diria conservador, pois essa palavra às vezes é usada de maneira imprecisa. São pessoas que estão contra esses temas que você mencionou. Por outro lado, a cidade de Nova York acabou de aprovar o casamento gay. Não vai tudo na mesma direção. O que houve é que o Partido Republicano ficou mais à direita do que era 20 anos atrás. Os republicanos moderados perderam espaço no partido para os radicais: antes ele tinha todo um ideário liberal, que praticamente desapareceu. 

Fala-se da dependência dos EUA em relação à China, seu maior credor. No entanto, a potência asiática não teria condições de se desfazer dos títulos do Tesouro americano sem reduzir sua poupança, não é?
Sim. EUA e China são parceiros econômicos extremamente importantes um para o outro. A China acumulou essas reservas na tentativa de exportar muito mais do que importar. Fez isso por meio de uma taxa de poupança elevada, mesmo em relação ao alto nível de investimento. Então, a China tem agora uma quantidade enorme de títulos do Tesouro americano, mas não tem muita escolha sobre isso. Não creio que vá se desfazer deles e, mesmo que isso ocorresse, não seria o desastre que se imagina. 

O historiador britânico Timothy Garton Ash disse recentemente sobre a China que ‘pela primeira vez. desde o fim do comunismo e da Guerra Fria, temos um competidor ideológico sério’: o ‘capitalismo autoritário’ chinês, que prescinde de disputas políticas como a que vemos agora entre democratas e republicanos. Quem vencerá a disputa?
Em primeiro lugar, considero que na maioria desses países, à medida que vão ficando mais ricos, a possibilidade de seus governos autoritários se manterem cai. O governo chinês tem popularidade porque trouxe crescimento econômico e bem-estar para grande parcela da população. Mas a tecnologia torna mais difícil manter o controle sobre as pessoas. Foi algo que vimos nesse recente desastre de trem (o choque entre trens-bala perto da cidade de Wenzhou, na Província de Zhejiang, que matou 39 pessoas no último dia 23). Até pouco tempo atrás era facílimo para o governo chinês ocultar esse tipo de desastre. Hoje, uma grande parcela da população, aquela que consome e usa internet nas grandes cidades, sabe das coisas - o que põe limites ao autoritarismo. Não acho que seja viável, no longo prazo, se manter esse tipo de autoritarismo. Se você vai à China, como fiz algumas vezes nos últimos anos, e conversa com estudantes e professores, todo mundo reconhece que gostaria de ter um pouco mais de liberdade. As aspirações estão lá. 

E o que se pode esperar em termos de impacto na economia dos países emergentes, em especial o Brasil?
Claro que, quando o mundo cresce mais, a economia brasileira vai melhor também. E, evidentemente, uma desaceleração no crescimento americano e europeu tem impacto sobre o Brasil. Os países não são como a Coca-Cola e a Pepsi: eles não concorrem um com o outro. Eles compram um do outro, trocam serviços, etc. Então, essa é a primeira coisa para a gente destacar. O Brasil tem algumas coisas muito boas. Por exemplo, é o produtor de comida mais eficiente do mundo hoje. E o fato é que, nos últimos 20 anos, principalmente na China e na Índia, uma parcela enorme de pessoas que se alimentava muito mal entrou para o mercado. Há uma enorme demanda mundial por produtos brasileiros desse setor - e mesmo que o crescimento desacelere não deverá haver uma queda nesse consumo, pois historicamente, quando as pessoas começam a comer, elas continuam a comer. Então, teria que ocorrer uma piora tão grande que a gente nem tem uma experiência recente para comparar. Esse já é um colchão. Outros produtos de exportação do Brasil são talvez mais sujeitos aos humores da economia mundial, como o ferro. Mas o Brasil também tem hoje um mercado interno importante. Esse processo pelo qual o País passou, que começa com a abertura comercial no início dos anos 90, o Plano Real, as privatizações, as reformas microeconômicas tanto do segundo governo do Fernando Henrique quanto do primeiro governo de Lula e a expansão dos programas sociais, tudo isso junto tornou o Brasil uma economia muito mais estável e muito mais produtiva. Temos ainda muito a fazer, mas é impressionante o que foi feito dos anos 90 para cá. Então, o Brasil está bem mais equipado para enfrentar a crise.

E o câmbio excessivamente valorizado não o preocupa?
O câmbio, obviamente, é um problema sério para o setor exportador. E a solução verdadeira passa por uma melhoria da situação fiscal que permita um corte de juros. O real hoje, entre as moedas confiáveis, paga uma taxa de juros muito maior que as outras. Então, não há investidor aqui em Nova York, em Londres ou em Tóquio que não considere comprar reais. E isso não acontece só pela vinda desse capital como pelo não êxodo: toda firma multinacional que está no Brasil diz: "Por que vou remeter meu dinheiro lá para fora quando posso deixar aqui num CDI?". Todo esse processo está trazendo a valorização do real. E a coisa mais importante para contê-la seria a queda da taxa de juros. Só que não podemos fazer isso com a pressão inflacionária atual. Já estamos no limite. Em outras épocas já achei que o País poderia ter cortado mais sua taxa de juros. Mas neste momento, em que estamos com a inflação no teto da meta, acho que seria um experimento perigoso. Então, a única maneira de se fazer isso direito é diminuir a pressão fiscal. Para ela, concorrem duas coisas: os gastos correntes do governo, é claro, e também uma reformulação de suas metas fiscais. O país tirou de suas metas fiscais alguns esteios do governo, o que passa pelo BNDES, por exemplo, que foi um passo na direção errada. Precisamos mudar isso para diminuir a pressão fiscal e cortar os juros.

Em sua história, já vimos os EUA enfrentarem situações delicadas, da Depressão dos anos 30 à desvalorização do dólar em 1971, e o país terminou dando a volta por cima. No médio prazo, o sr. acredita que o sistema político americano dará conta de promover a recuperação econômica?
Apostar contra os Estados Unidos nesse tipo de situação não é uma boa aposta. Mas acho que estamos vivendo uma época muito difícil, não se pode subestimar a dificuldade presente. Uma economia que não cresça por quase quatro anos começa a ter pressões políticas muito negativas. Então, não dá para ser otimista no curto prazo. Mas o potencial dos EUA está em práticas e valores construídos ao longo de muitos anos. O fato de o país ter instituições estáveis por mais de dois séculos é muito importante. E também o fato de o país ter construído todo esse arcabouço que está por trás do crescimento: a produção de conhecimento, inovação, educação, etc. Se isso for perdido, aí sou pessimista. É algo que custou caro e precisa ser renovado o tempo todo. Mas foi o que permitiu à economia americana criar a riqueza que ela sempre criou.


FONTE: O ESTADÃO